De funcionários fantasmas à 'bônus secreto', câmara de vereadores do Rio fica muda com as acusações.

 A Câmara de Vereadores do Rio gastou, só em abril deste ano, R$ 6,3 milhões com o pagamento de uma espécie de gratificação secreta para metade de seus servidores.

Informações sobre a gratificação que, por lei, deveriam ser públicas, na prática não podem ser encontradas no Portal da Transparência da Câmara por quem procura detalhes sobre o encargo especial. Entre elas:

Quantos servidores ganham essa gratificação, chamada oficialmente de “encargo especial”

Quanto isso custa aos cofres públicos

Quais são os critérios para pagamento deste benefício

Para tentar descobrir exatamente quem ganha o benefício e quanto cada um ganha, a GloboNews e o RJ2 fizeram um requerimento via Lei de Acesso à Informação.

A Câmara não enviou a lista com os nomes e valores dos meses solicitados. No entanto, admitiu que o bônus existe, mas não está detalhado nos contracheques de seus funcionários.

Passo a passo

Na resposta, a Controladoria-Geral da Câmara indicou um roteiro com oito passos para se ter acesso à folha secreta.

O passo a passo, porém, não é nada simples. Em abril, a Câmara tinha 2.137 funcionários, entre efetivos e comissionados.

Para se descobrir quanto cada servidor ganhou de encargo especial, é necessário abrir 2.137 contracheques, um por um. E depois calcular, por conta própria, o valor do encargo especial.

É ainda mais complexo porque o encargo especial está dentro do campo “verbas indenizatórias” – este sim disponível de maneira clara nos contracheques.

Pelo roteiro enviado pela Câmara, para se chegar ao valor do encargo especial que cada servidor recebe, é preciso pegar o valor das “verbas indenizatórias” disponível em cada contracheque e depois subtrair os valores de três benefícios fixos: indenização de alimentação, auxílio-transporte e auxílio-saúde. O que sobrar dessa conta é a gratificação secreta, o chamado “encargo especial”, que varia de R$ 2.366,44 a R$ 7.923,56.

“Não é aceitável, porque a Câmara possui essas informações e possui essas informações em formato digital. Até porque ela paga mensalmente os salários e os encargos dos servidores. Então não é razoável colocar isso na responsabilidade de quem pediu a informação. Essa é uma estratégia clara de dificultar um acesso à informação de interesse público”, ressalta Renato Morgado, gerente de Programas da Transparência Internacional.

Depois de seguir o passo a passo enviado pela Câmara Municipal do Rio, a reportagem descobriu o tamanho dessa folha secreta.

Em abril, 1.075 funcionários da Casa ganharam o encargo especial. Isso corresponde a 50,3% do total de servidores do parlamento.

Com essas pagamentos sem nenhuma transparência, a Câmara gastou R$ 6.302.296,17 apenas no mês de abril.

Desse total, R$ 4.224.446,99 foram para turbinar o salário de funcionários lotados nos gabinetes dos 51 vereadores.

“O Legislativo funcionando no exercício das suas atividades ordinárias, é estranho que 50% do seu efetivo esteja recebendo encargos especiais. Alguma coisa está errada. Ou o quadro de pessoal está errado, e portanto você está corrigindo com encargos especiais, o que não é o caminho correto, ou os encargos estão sendo aplicados fora da moldura que o estatuto estabeleceu para eles”, explica Vanice Valle, doutora em Direito Administrativo.

“Você pode ter um caso de mau uso de recursos, se esses encargos especiais estão sendo pagos em base de forma injustificada. Mas existe também o risco de corrupção, né? Infelizmente, existem casos da chamada rachadinha, que, apesar desse nome, a gente está falando de desvio de recursos públicos. Então, quanto menos claro e menos transparente são os pagamentos a servidores, mais espaço você tem para esse tipo de esquema de corrupção”, conclui Renato Morgado, da Transparência Internacional.

No requerimento pela Lei de Acesso à Informação, a reportagem solicitou informações sobre as regras e os valores dos encargos especiais. A Câmara respondeu apenas que o benefício está previsto no Estatuto do Servidor Público municipal, de 1979.

Só que este mesmo estatuto exige uma lei ou regulamento para definir quais são as atividades especiais que merecem o bônus. Nada disso foi apresentado pela Câmara.

“Aquilo que você faz, especialmente com os recursos do erário, tem que ser objeto de maior transparência: quanto se paga, a quem se paga. E no caso dos encargos especiais, em que condições. O fato gerador dos encargos especiais é uma tarefa especial. Então o que há de especial que está sendo feito por essas pessoas que justifica o pagamento?”, questiona Vanice Valle, doutora em Direito Administrativo.

Sistema automatizado

A pedido da GloboNews e do RJ2, o Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) criou um sistema automatizado para abrir todos os contracheques no site da Câmara do Rio, que teriam que ser checados manualmente, um por um.

O Ministério Público do Rio já questionou a falta de transparência desses pagamentos numa ação na Justiça contra a Câmara de Vereadores.

O MP localizou um ato secreto do presidente da Casa, Carlo Caiado. Assim que assumiu a presidência, em 2021, o vereador estipulou algumas regras para a distribuição das gratificações. Cada gabinete de vereador teria direito a oito encargos especiais. Só que, diz o MP, o ato número 1de Caiado nunca foi publicado no Diário Oficial.

Em abril, Caiado distribuiu o bônus especial para 19 funcionários do próprio gabinete, mais do que o dobro previsto na regra assinada por ele.

Churrasco e cerveja no horário do expediente

A reportagem mostrou que várias das pessoas que recebem a gratificação não estão em gabinetes ou na câmara no horário de serviço.

No gabinete do vereador Dr. Gilberto, 14 pessoas receberam a o encargo especial em abril. Entre elas o assessor Antônio Carlos Tito Moreno, flagrado pela reportagem comendo churrasco e bebendo cerveja em um bar, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, em dia de semana, no horário do expediente.


Repórter: “O senhor trabalha na Câmara Municipal do Rio?”.


Repórter: “O senhor não deveria estar lá não?”.


Antônio Carlos: “Que dia é hoje, bonitona?”.


Repórter: “Sexta-feira”.


Antônio Carlos: “Eu não tenho obrigação de estar lá”.

Em 16 meses, a Câmara pagou R$ 90.988,95 em encargo especial a Antônio Carlos. Com o salário turbinado pela gratificação, ele ganhou nesse período mais de R$ 300 mil da Câmara. Ele foi abordado pela equipe da GloboNews.


Repórter: “É lá no bar o trabalho do senhor?”.


Antônio Carlos: “Olha só, aquele bar lá é do meu irmão. Eu passo lá porque ali também eu faço demanda, eu peço pra asfaltar, cortar árvore. Eu vou em tudo quanto é lugar”.

Outro caso foi o de Andrezza Borges é mulher do secretário estadual de Turismo, Gustavo Tutuca.


Na internet, uma vida social bem agitada: camarote na Sapucaí e muitas festas. Desde 2021, Andrezza tem um cargo comissionado de consultora no gabinete da vereadora Verônica Costa. O salário com o encargo especial passa de R$ 20 mil. Mas no gabinete ninguém conhece Andrezza.


Repórter: “Eu preciso fazer essa entrega em mãos pra Andrezza. Ela está aqui?”.


Funcionário: “Não”.


Repórter: “É 605 aqui, né?”.


Funcionário: “Mas qual a vereadora?”.


Repórter: “Verônica Costa”.


Funcionário: “É...”.


Repórter: “Andrezza? Ela não trabalha aqui?”.


Funcionário: “Não”.


A rotina dela é bem longe da Câmara Municipal, no Centro do Rio. No início da tarde, ela leva o filho na escola, na Barra da Tijuca. E aí depois aproveita o tempo para malhar com a academia, também na Barra, mais vazia.


Na quinta-feira passada, era pra ser mais um dia de treino com professor particular.


Repórter: “Oi, Andrezza. Oi, bom dia! Tudo bem? Eu sou Anita, da TV Globo. Você está indo para a academia?”.


Andrezza: “Eu não quero ser filmada, não”.


Repórter: “Você é servidora da Câmara dos Vereadores?”.


Andrezza: “Não”.


Repórter: “Você sabe qual é o gabinete?”.


Repórter: “Você sabe qual gabinete você é lotada?”.


Andrezza: “Você está falando sério?”.


Repórter: Você ganha R$ 20.000 na Câmara dos Vereadores. Você sabia disso?


Andrezza: “Você está falando sério?”.


Repórter: Super sério.


Repórter: “Você recebe gratificação. Você exerce qual trabalho lá especificamente?”.


Andrezza: “Eu não vou falar não, moça”.


Repórter: “Você é servidora pública fantasma?”.


Andrezza: “Eu não quero falar".


Outro caso mostrado na reportagem é o de Helton Lopes, compositor, servidor público da Prefeitura do Rio e já foi candidato a vereador.


O funcionário está cedido pela Secretaria municipal de Urbanismo para a Câmara de Vereadores. Deveria trabalhar na Comissão de Licitações. Só que o negócio dele não é contrato público.


Ele sai de casa, em Irajá, na zona norte do Rio, com destino a Botafogo, na Zona Sul, onde tem um quiosque de venda de flores. Sem saber que estava conversando com um repórter, ele admitiu mais uma vez que trabalha no local todos os dias da semana.


Helton: “Aqui, ó. Eu tô aqui de domingo a domingo”.


Repórter: “Domingo a domingo, é? Pô, legal! Você que é o gestor aí?”.


Helton: “Sim. Tem eu e uma outra sócia, que ela é cabeleireira, quase não vem. O que você precisar, orientação, é só mandar um 'zap' pra gente, que a gente vai lá e executa”.


Ao ser procurado pela reportagem, não quis falar nada sobre o trabalho na Comissão de Licitação da Câmara.


Repórter: “Helton! Tudo bem? Bom dia! Tudo bom? A gente está fazendo uma reportagem sobre a Câmara Municipal do Rio de Janeiro... O senhor é da Prefeitura, está cedido pra Câmara, mas não aparece pra trabalhar?”.


Helton: “Não sei dessa história, não”.


Helton: “Olha só, preciso de ir, tá? Tenho que trabalhar, tá gente?”.


Repórter: “O senhor tá lotado na Comissão de Licitações da Câmara e não tem nenhum registro do seu trabalho lá”.


Repórter: “O senhor trabalha aqui todo dia...”.


Repórter: “A gente está acompanhando a sua rotina há algum tempo e todo dia o senhor está aqui vendendo flores e não está trabalhando com licitações na Câmara”.


Repórter: “Tenho aqui o seu contracheque... o senhor ganha uma gratificação por encargos especiais na Câmara no valor máximo de quase R$ 8 mil”.


Helton: “Dá licença, está me atrapalhando. Está me atrapalhando”


Repórter: “Não tem que dar satisfação à sociedade?”.


O que dizem os citados

Em nota, a Câmara Municipal do Rio negou a existência de uma folha secreta. Disse que os valores das gratificações por encargos especiais estão dentro de uma rubrica chamada de indenizações e que esses valores estão nas folhas de pagamento individuais e disponíveis na internet. Mas afirma que é preciso fazer um cálculo, subtraindo do total os valores de auxílios saúde, transporte e alimentação, também disponíveis no Portal da Transparência.


O gabinete do presidente da Casa, Carlo Caiado, disse que tem uma série de acúmulos de função, em virtude de sua posição como presidente, em que servidores atuam em atividades ligadas à administração da casa, motivo pelo qual existem mais gratificações.


Segundo a Câmara, o servidor Helton Lopes atua em atividades externas, em diligências e vistorias, entre outras atividades, em horário flexível e que quanto à regulamentação, trata-se de um ato administrativo interno.


A vereadora Verônica Costa afirmou que Andrezza Borges exerce a função de gestora das redes sociais e também presta assessoria no gabinete móvel junto à comunidade.


A vereadora disse ainda que devido às tarefas executadas, Andrezza tem flexibilidade no horário de trabalho.


O vereador Dr. Gilberto disse que Antônio Carlos Tito Moreno cumpre integralmente o expediente de 30 horas de trabalho semanal, inclusive em finais de semana e feriados — como autoriza uma resolução da Câmara.

Fonte: Globo.com

Redação: Jornalismo A Voz do Povo.

Direção: Jornalista Marcio Carvalho

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