Médica agredida por pai e filha, diz que não vai deixar o hospital que trabalha no Rio.

 'A gente não pode deixar que a falta de educação e a violência nos tirem da nossa vocação', diz médica agredida por pai e filha em hospital do Rio.

Sandra Lúcia contou que o homem estava descontrolado. Sem alternativa, profissional afirmou ter tentado se defender como podia

18/07/2023 04h30  Atualizado há 4 horas

Sandra Lúcia: médica estava sozinha com 60 pacientes no hospital quando foi agredidaSandra Lúcia: médica estava sozinha com 60 pacientes no hospital quando foi agredida Reprodução

Única médica no plantão da madrugada de anteontem no Hospital municipal Francisco da Silva Telles (HMFST), em Irajá, na Zona Norte do Rio, Sandra Lúcia Bouyer Rodrigues — responsável por cuidar dos 60 pacientes que estavam na unidade — foi agredida a socos e pontapés por um homem que procurou a unidade de saúde por causa de um corte no dedo. Enquanto a profissional era atacada, Arlene Marques da Silva, de 82 anos, considerada uma paciente grave que estava internada na sala vermelha, passou mal e morreu.

Pai e filha em fúria: depois de ataque em hospital, mulher teria ameaçado médica de morte, diz delegado

Durante espera por atendimento: Pai e filha são presos por homicídio doloso após agredirem médica e paciente morrer durante confusão em hospital do Rio

— Eu só queria que aquelas pessoas fossem embora dali o mais rápido possível, para garantir a integridade dos pacientes. Infelizmente, a insegurança é uma rotina para nós. Agressões verbais já passei por milhares, mas uma agressão física, ainda mais com esse tipo de raiva, de ódio, foi a primeira vez — contou Sandra Lúcia, de 52 anos.

Cinco crimes

André Luiz do Nascimento Soares, de 46 anos, e sua filha Samara Kiffini do Nascimento Soares, de 23, foram presos em flagrante. Antes de a médica ser agredida, os dois invadiram a área de pacientes graves, quebraram vidros, cadeiras e deixaram um rastro de destruição por onde passaram. Eles foram autuados por homicídio doloso, lesão corporal, dano ao patrimônio e desacato. Samara também foi acusada de coação por ameaçar a médica de morte. A Justiça decide hoje se pai e filha vão continuar presos. O advogado Cláudio Rodrigues, que defende os acusados, disse que autuar por homicídio é “forçoso demais”.

Ele já veio com a intenção de me agredir, mas não esperava que eu ia encará-lo. Acho que por isso não me bateu mais. Consegui desviar do primeiro soco, mas não do segundo. Caí no chão e ainda levei um chute. Na hora eu pensei em tentar ficar o mais íntegra possível, mas é difícil raciocinar em meio a uma situação como esta

— Sandra Lúcia, médica espancada em hospital

Sandra Lúcia contou que o homem estava descontrolado. Sem alternativa, a médica disse que tentou se defender como podia:

— Ele já veio com a intenção de me agredir, mas não esperava que eu ia encará-lo. Acho que por isso não me bateu mais. Consegui desviar do primeiro soco, mas não do segundo. Caí no chão e ainda levei um chute. Na hora eu pensei em tentar ficar o mais íntegra possível, mas é difícil raciocinar em meio a uma situação como esta.

Ataque em hospital: o que se sabe até agora sobre agressão contra médica que terminou com pai e filha presos

Havia quatro vigilantes na unidade

De acordo com a Secretaria municipal de Saúde (SMS), na hora das agressões havia quatro vigilantes desarmados na unidade, mas eles não foram capazes de impedir nem as agressões, nem o vandalismo perpetrado pela dupla enfurecida.

— Tínhamos quatro profissionais de controle de acesso, mas o paciente dizia que estava armado e, neste caso, nossos vigilantes não conseguem impedir, não temos vigilantes armados — explicou Daniel Soranz, secretário municipal de Saúde.

O que se tem hoje não são seguranças, nem vigilantes treinados. São o que eles chamam de controladores de fluxo, pessoas que não estão preparadas para lidar com situações de violência, o que põe em risco tanto os profissionais quanto os pacientes

— Paulo Pinheiro, presidente da Comissão de Saúde da Câmara

Falta de seguranças nas unidades de saúde

Segundo o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), presidente da Comissão de Saúde da Câmara, a falta de segurança é regra nos hospitais públicos na cidade:

— O que se tem hoje não são seguranças, nem vigilantes treinados. São o que eles chamam de controladores de fluxo, pessoas que não estão preparadas para lidar com situações de violência, o que põe em risco tanto os profissionais quanto os pacientes.

'Agora só quero justiça': Idosa que morreu durante ataque de fúria em hospital teria alta esta semana, diz a filha

Como se não bastasse a vulnerabilidade do hospital, o caso de violência chamou a atenção para o fato de haver apenas uma médica de plantão na unidade, que tem 91 leitos — 57 estavam ocupados ontem de manhã — e emergência 24 horas, com média mensal de 4,5 mil atendimentos.

— No plantão deste fim de semana, deveríamos ter dois médicos, mas um deles teve um problema de saúde. O certo é substituir esse médico, mas como tudo ocorreu em cima da hora, não foi possível. Reforçamos com o diretor da unidade que não pode ter esse desequilíbrio — disse Soranz.

Total de 154 médicos

A SMS informou que, “nos setores de internação, há médicos de rotina das 8h às 18h”. Na emergência, são quatro durante o dia e dois à noite. No total, o hospital de Irajá tem 154 médicos, sendo 55 na emergência clínica.

— Não pode uma médica ficar sozinha para atender 40 pacientes e mais 20 gravíssimos. O normal, numa unidade deste tamanho, seria termos pelo menos cinco médicos de plantão. Talvez, se essa regra fosse seguida, essa situação toda fosse evitada — criticou Paulo Pinheiro.

Em nota, o Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj) repudiou a agressão sofrida pela médica e manifestou solidariedade a “todos os profissionais da saúde que viveram momentos de terror em seu ambiente de trabalho”. Só no ano passado, 80 foram agredidos em todo o Estado do Rio, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

Salvamento na estrada: Agentes da PRF salvam criança engasgada em rodovia no Rio; entenda a técnica usada

Enquanto isso, parentes de Arlene mostraram indignação com a morte da idosa.

— Só quero justiça — lamentou Elaine Marques, de 52 anos, filha de Arlene. — Por causa de um cortezinho no dedo dele, leva a vida da minha mãe? Ele (André Luiz) entrou na sala simulando que estava armado. Todo mundo saiu correndo. Um paciente com bolsa de colostomia correu e se escondeu no banheiro. Foi o que me contaram. Minha mãe quando viu aquilo começou a passar mal na cama e não pôde ser atendida porque estavam socando a cara da médica. Por falta de segurança, que eu nunca vi ali na porta, aconteceu isso.

O delegado Geovan Omena, da 27ª DP (Vicente de Carvalho), responsável pela investigação, disse que a médica foi covardemente agredida:

— Fiquei indignado com o ocorrido porque é uma coisa desproporcional. Nada justifica a agressão. Ele tinha um corte no dedo. Um band-aid resolvia o caso dele a noite toda.

Drama da vida real: ‘Sob ameaça ou não, eu vou lutar por justiça até o fim. Sem medo’, diz mãe de Eduardo, menino morto no Alemão em 2015

Ainda se recuperando do trauma do último plantão, Sandra Lúcia se prepara para outra batalha: voltar a trabalhar no hospital onde tudo aconteceu.

— Vou voltar, sim. Não esta semana, mas vou voltar. Se eu disser que não estou com medo é mentira, mas a gente não pode deixar que a falta de educação e a violência nos tirem da nossa vocação — ensina.

Redação: Jornalismo A Voz do Povo.

Direção: Jornalista Marcio Carvalho

Deixe seu comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem

Publicidade